
Muito longe de casa trata da guerra civil em Serra Leoa, na visão do adolescente Ishmael Beah, que é recrutado como menino-soldado, vivendo todo o horor da guerra. O conflito mal era noticiado e não houve auxílio da ONU. Resultado final: a luta durou 10 anos, morreram 5,4 milhões de pessoas e só terminou com a intervenção do exército do Congo.
Por sua vez, "Sobrevivi para contar" conta a história de Immaculée Ilibagiza, uma jovem que passou nada menos que 100 dias escondida num banheiro minúsculo com outras 6 mulheres para escapar do genocídio de sua minoria étnica em Ruanda no ano de 1994. Não houve nenhuma resposta da ONU, nenhuma intervenção ou qualquer auxílio externo. Resultado: o extermínio de cerca de 1 milhão de pessoas da minoria tutsi (80% dessa população) pela maioria hutu. Tal conflito é retratato com primazia no filme Hotel Ruanda (2004). O conflito somente é encerrado quando exilados tutsis (exilados durante a fuga em massa do último genocídio) invadem o país, a partir de Uganda, e derrubam o governo hutu que conduzia o genocídio. Por falar nisso, a salvação vem da mesma Uganda de Idi Amin (conhecido pelas alcunhas de "açougueiro de Kampala" e "senhor do horror", com seus hábitos de comer carne humana...), retratado de forma ultra-light em O último Rei da Escócia (2007).
Qualquer semelhança entre os conflitos pode não ser mera coincidência! Ambos os livros são importantes por trazerem a pauta um problema que simplemente não se discute. Afinal, o genocídio nos conflitos citados superam o total de mortos do holocausto judeu na segunda guerra. As atrocidades praticados na "Mama África", para qualquer instabilidade política, evidenciam uma tendência de indiferença e pervesidade da raça humana. A receita é muito simples: instabilidade política (ausência de um processo democrático consolidado), pouca educação e falta de recursos econômicos. Os ingredientes são poucos, mas a receita mostra o pior da humanidade, principalmente se aliados a questões raciais. Neste cenário, facilmente surgem grupos ursupando o poder para expropriação de riquezas, e fazendo isso as custas de extermínios. Perceba que não existe uma razão para o problema ser exclusivamente africano: isso aconteceria da mesma forma nos países de primeiro mundo se as mesmas condições estivessem presentes. Uma evidência clara disso é a total indiferença a tais genocídios. Ou seja, os mesmos podem ser aceitos com surpreendente naturalidade (i.e. desde que não existam interesses econômicos em contrário). Triste mas verdadeiro!
Quando li muito longe de casa, o livro me tocou pela linguagem simples, direta e tocantemente honesta. Sem ideologias, floreamentos ou eufemismos: apenas a realidade. Esse não é o caso de sobrevivi para contar. A tocante história de sobrevivência, e seu relevante contexto histórico, são postos em segundo plano para dar lugar a um discurso religioso. Em diversos momentos, percebe-se claramente que sua narrativa é forçada para convergir às convicções religiosas da autora, no que beira a pregação pura e simples. Em certos momentos parece muito um livro de auto-ajuda de baixa qualidade. No entanto, em se tendo a boa vontade de relevar tais aspectos e de se concentrar na história em segundo plano, percebe-se que o livro consiste de um relato fabuloso de uma sobrevivente. Uma história a ser conhecida e disseminada como um alerta a todos.
Embora não tenha lido pessoalmente, outras fontes de informação são o livro "Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias" de Philip Gourevitch (também disponível em edição de bolso) e os documentários Ghosts of Rwanda (2004) e Shake Hands with the Devil: The Journey of Roméo Dallaire (2004).